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Eloy Ornellas (patrono)


O texto abaixo foi escrito pelo acadêmico professor Walter Siqueira e publicado no Folheto de Cultura n. 3, editado pela Secretaria de Educação e Cultura, departamento de Difusão Cultural da Prefeitura Municipal de Campos.


O poeta Eloy Ornelas morreu na gloriosa cidade de São Salvador dos Campos dos Goitacazes, no dia 8 de janeiro de 1925.

 

O evento está registrado nas "Efemérides da Terra Goitacá", Tomo 1, do historiador Alberto Lamego (Alberto Frederico de Moraes Lamego), cuja edição se fez na Imprensa Oficial do Estado em 1945.

 

Consta do citado obituário que o poeta Eloy Ornelas, casado com a sra. Antônia Barbosa Ornelas, deixou dois livros inéditos: "Lendas Sertanejas" e "Cinzas".

 

Do seu enlace nupcial com a sra. Antônia Barbosa Ornelas - nasceram três filhos: Cid Ornelas, Ary Ornelas e Ami Ornelas.

 

Nada mais diz o historiador Alberto Lamego sobre o poeta Eloy Ornelas, cujo nome o povo goitacá nesta oportunidade reverencia. Desceu sobre a memória do poeta Eloy Ornelas, depois de sua morte, um doloroso véu de silêncio, não se cuidando, como devia, de editar os seus livros inéditos, nem aqueles que o admiravam, nem tão pouco a sua própria família, por razões que o bom-senso exige que se respeitem.

 

O prefeito, doutor Salo Brand, nomeou, em 1943, uma comissão especial constituída pelos jornalistas e intelectuais, dr. Barbosa Guerra, Silvio Fontoura e Gastão Machado para fazer a revisão da nomenclatura dos logradouros públicos de Campos, e, na exumação histórica de nomes esquecidos, o de Eloy Ornelas veio à tona, passando a batizar uma rua, da paróquia de Nossa Senhora do Rosário do Saco, transversal à Avenida Alberto Torres.

 

Os poetas acabam sempre, um dia, sendo nomes de rua. O notável poeta Jacy Pacheco glosou esse inglório destino dos sonhadores imprevistos e imprevidentes, com aquela ironia esporádica que, por vezes, lhe assalta o espírito, em nome de sua úlcera incubada e disse, dizendo-o em rimas :

 

"SONETO CONTRA ... "

 

Um vate burila e lima,

com pertinácia, com ardor,

num tentame de obra-prima,

o seu soneto de amor.

 

No dicionário acha a rima

de efeito compensador.

Mas quase que desanima

na escolha de "odor" e "olor".

 

Em molde e linguagem gastos

ou apupa o modernismo

ou chora os fados nefastos.

 

Faz muitas odes à lua,

e no seu contemplativismo,

sonha ... ser nome de rua.

 

A rua Eloy Ornelas, segundo se lê no "Guia Geral da Cidade de Campos", fundado em 1943 pelo dr. Hélvio Bacelar da Silva e agora sob a direção do sr. Herbson da Rocha Freitas, tem início na Avenida 15 de Novembro e termina na rua Cora de Alvarenga. Originariamente, era a rua "A" do Parque Vila Amaral.

 

O historiador Horácio de Souza, católico engajé, tão cioso das tradições históricas da terra goitacá, não deu o devido apreço ao nome do poeta Eloy Ornelas, em sua obra "Cyclo Áureo - História do 1° Centenário da Cidade de Campos", editada em 1935, pela Escola de Aprendizes Artífices, onde inseriu um belo encarte sobre "Poetas e Literatos de Campos", arrolando-o, apenas, entre os colaboradores da revista "A Aurora", de Teófilo Guimarães ao lado de Tomé Guimarães, Manoel Carneiro, Flamínio Caldas, Freitas Guimarães, Mário Fontoura, Franzlin de Almeida e outros.

 

Deixou, assim, concebe-se, de reconhecer em Eloy Ornelas um poeta de altitude maior, incompatível com os destaques honoríficos que consagram.

 

O historiador Múcio da Paixão também cometeu igual pecado de omissão, deixando de biografar Eloy Ornelas, e limitando-se a colocá-lo ao lado de Silvino Canela, Artur Silva, Novantino Santos e outros, como simples colaborador da revista "A Aurora", em seu "Movimento Literário de Campos", editado em 1924 - um ano antes da morte de Eloy Ornelas, quando o poeta já de si havia dado toda a floração poética em sonetos e poemas que o elevaram a planos respeitáveis da criação.

 

De 1972 para cá, muitas homenagens se estão votando aos manes de Eloy Ornelas (fazendo-se colheita, a esmo, de seus versos, estampados em folhas locais, que se vão consumindo pela voragem dos tempos. Comete-se, porém, o descuido de reproduzir as amostras poéticas de menos brilho da lavra do vate saudoso para se por em relevo aquelas que talvez representassem apenas efêmeras fases e diletantismo estético.

 

De méritos incontestáveis é o soneto "Mulher Campista", em lapidares alexandrinos, que recolhi na biografia de "Benta Pereira", escrita pelo dr. Godofredo Tinoco, e editada em 1958, às expensas do próprio autor. O poeta Eloy Ornelas havia competido, num certame poético de louvor à mulher campista, e, embora não lograsse obter o galardão maior, que coube ao insuperável Rodrigues Crespo, um dos melhores sonetistas do Brasil, ombreara-se com Prisco de Almeida e Manoel Moll. O soneto tem as sonoridades e as imagens destes versos de sincera exaltação:

 

"MULHER CAMPISTA"

 

Salve, Mulher Campista ! Águia - asas esplanadas

a esvoaçar pelo azul, onde se perde a vista !

Fazei o novo ninho além, na verdejante crista

da montanha, que, ao sol, reluz nas madrugadas.

 

Vejamo-la na guerra, à luz de uma conquista,

brandindo corações - flechas ao vento aladas;

vejamo-la no lar, de almas sempre ajoelhadas,

ou no livro, a estudar na ânsia de beletrista !

 

Artista - tem na veja o sangue de Minerva !

Bela - de Vênus tem o esplendor que se enerva !

Pobre - tem a altivez dos tipos mais audazes.

 

Atalaia de Fé, Sentinela altaneira,

traz na retina um vulto - o de Benta Pereira,

e, no seio, o valor dos índios Goitacazes.

 

Nascido em 1872, quando imperava D. Pedro II, protetor, pelo gesto do mecenato artístico, dos pintores e poetas, dos sacerdotes e cientistas, Eloy Ornelas entrou na República sem vibrar com as mudanças políticas que se verificaram no país. Não encontro, em sua poesia de teor romântico, sinais de civismo eventual, de modismos ideológicos ou de patriotismo de bastidores ou de fechada. Era ele, ne final de contas, o que dele disse, com bastante propriedade crítica, o seu contemporâneo Claudinier Martins, poeta de minha estima, de meu respeito e de minha admiração: "Eloy Ornelas realizava sonetos impecáveis, na forma e no conceito. Era um poeta, ora lírico, ora parnasiano. E dos bons. Não se poderá dizer que fosse um boêmio no sentido pejorativo do termo. Era como todos os sonhadores um homem sem preconceitos".

 

Os temas sociais exaltavam-no, do ponto-de-vista moral. Observava, com argúcia inteligente, com agudeza filosófica, os dramas pessoais que se desenrolavam à sua volta, numa sociedade amorfa, em que o poder econômico, voraz e dominador, massacrava as criaturas humanas sem piedade, corrompendo-as e evitando-as. Dessas observações de Eloy Ornelas, resultou o soneto "Adúltera", que é o terrível anátema lançado sobre aqueles seres infelizes, que abandonam a redoma das virtudes para caírem na vala comum dos pecados:

 

ADÚLTERA

 

Ei-la, arrastando sedas, rua em fora,

na requintada ostentação do gozo,

sem recordar-se que o infeliz esposo,

de olhos magoados, delirante, chora.

 

Brilham, como os clarões da luz da aurora,

Os candelabros de oiro, do seu pouso ...

Mas nada vale um leito sem repouso,

onde a honra morre e a Vida se evapora !

 

Cegou-a o Luxo, o Fausto, a Fantasia ..

A Luxuria mordeu-lhe a carne, um dia.

E essa, do Lar, o pomo da Discórdia.

 

Ao ver-se a sós, sem ter quem a idolatre,

há-de em remorso se estorcer, no catre,

da Santa Casa de Misericórdia !

 

Dizem os memorialistas da atualidade que "o centenário de Eloy Ornelas seria o momento mais propício para uma releitura de seus versos. Mas ninguém é certo, poderá fazê-lo, de vez que o poeta não deixou impresso o seu pretendido livro. Sua tentativa neste sentido falhou. Hoje nos resta apenas a tradição poética de Eloy Ornelas a ser comprovada na pesquisa do que deixou publicado nos jornais e revistas da época". Assim é. Culpem-se as autoridades que representam o poder público pelo descaso, pela desídia, pela indiferença que votam aos poetas e mortos. Ninguém, neste país, se interessa pela historiografia literária, pelas reedições valiosas, pela edição dos livros póstumos inéditos. Não é difícil buscar, nas coleções de jornais e revistas, os sonetos e poemas dos que morreram em matéria, mas vivem em espírito, como Eloy Ornelas, de quem transcrevo agora, o sonetilho "De Pince-Nez":

 

Não tragas assim teus olhos

velados pela vidraça

dos óculos negros, - antolhos

de tua divina Graça.

 

Gosto de ver os refolhos

de uma beleza sem jaça;

não tragas assim teus olhos

não faças minha desgraça !

 

Por que trazes prisioneiros

os teus olhos feiticeiros ?...

Liberta-os, minha querida !

 

Eu quero ler, nas meninas

dos teus olhos, nossas sinas,

qual o fim de nossa vida.

 

Pouco se há de dizer de Eloy Ornelas, tão chã e modesta transcorreu a sua existência. Autodidata, não colocou no dedo anelar um anel de doutor para que lhe tirassem o chapéu quando passasse. Gloriosamente - dir-se-ia com certo sarcasmo - morreu como funcionário postal. O sr. Agripino Grieco, vindo a esta cidade para dissertar sobre a "População Lírica de Campos", não se eximiu da cáustica irreverência que sobressaltava sempre em suas frustrações congênitas, quando se dispôs a retratar o inditoso poeta Eloy Ornelas, a quem Deus concedeu apenas 53 anos de trânsito terreno; não o poupou das verrinas impertinentes.

 

"Eloy Ornelas, humorista de pouca cultura, de instintos quase divinatórios, era funcionário postal e ele próprio confessava, quando Lambo das pernas, não trocar a sua bebedeira por dez contos de réis. Um desafeto declarou viver ele à moda do peru, isto é, estar sempre cientemente encharcado para entrar na faca no dia seguinte ... São dessa agradável ignorante estas rimas tecidas de lua e música:

 

Quando fizerem serenata,

não cheguem nunca à minha porta !

Deixem dormir numa sonata

 

minha ilusão já quase morta.

Passem de longe ... pouco importa,

quando fizerem serenata.

 

Ó meu flautista predileto !

Para que vibras tão magoado ?

Não bulas mais com quem está quieto

Quanta saudade do passado,

quando eu vivia enamorado

Ó meu flautista predileto !

 

Que vens fazer aqui neste ermo ?

gemendo tanto, ó meu violino ?

Vens inspirar o poeta enfermo

para cantar da morte o hino ? !

Oh! Stradivário peregrino,

que vens fazer aqui neste ermo ?

 

Sigam, boêmios, rua em fora !

Não passem mais por minha casa !

A febre ardente me devora,

e a fronte pálida me abrasse

Já rompe a aurora cor de brasa !

Sigam, boêmios, rua em fora !

 

E o canto de cisne do poeta, que, no leito de dor agonizava, sabendo que a morte lhe desceria, breve, a negra mortalha sobre o corpo moribundo. Pertencem estas sextilhas ao sentido e magoado poema rotulado como "SÚPLICA" DE UM ENFERMO", o último que o bardo boêmio havia composto, antes de entregar a alma a Deus".

 

Como se vê, o sr. Agripino Grieco exalta e deprime. Por metáfora, declara ter sido Eloy Ornelas um pau dágua. Bebia-se muito naquela época, por razões ou sem razões. Pouco importam os motivos que conduziram os poetas às libações alcoólicas. De mais sentido enobrecedor seria lembrar-se que, acima do estado etílico, estava o estado de graça poética, daquele boêmio sem maus bofes, que souber fazer de um "Velho Rabequista" essa apologia comovedora:

 

VELHO RABEQUISTA

 

Vive a esmolar nas ruas da cidade

um velhinho sem lar e sem destino,

abraçado, saudoso, ao seu violino,

cantarolando em verso uma saudade.

 

Quando à tardinha em dobres tange o sino,

e a alma das cousas cai na realidade,

ele, sem luz, sem fé, sem mocidade

segue o trilho fatal do peregrino.

 

E vai dormir à porta de uma Igreja,

descansando, afinal, da árdua peleja,

durante um dia de penosa vida.

 

É mais feliz do que eu, que a lira infausta

vivo sempre a vibrar, sem que a alma exausta,

possa, enfim, numa outra alma achar guarida.

 

Dizem por aí, que os poetas são intérpretes de sentimento e pintores de paisagens que os olhos humanos contemplam e não sabem retratar ou traduzir. Cabe, então, aos poetas, essa missão. Paradoxal missão! Os poetas vivem a cantar sentimentos e a pintar paisagens, e só os proprietários dos dólares vão vivê-los e senti-los, optando por Guarapari, Mônaco, Acapulco. Côte d'Azur Veneza, Bariloche, Miami Beach ou Guarujá.

 

O poeta Eloy Ornelas nasceu na freguesia de Nossa Senhora da Penha de Morro do Coco, quando o Brasil ainda era Império, no dia 24 de agosto de 1872. Por coincidência, três anos depois, no mesmo dia em Visconde do Rio Branco, em Minas Gerais, nascia o poeta Antônio Silva, que aguardou a chegada de sua velhice gloriosa e pobre, em Conselheiro Josino, quando Conselheiro Josino também integrava a freguesia de Nossa Senhora da Penha de Morro do Coco.

 

De Eloy Ornelas, de quem pouco se sabe hoje em dia, porque não teve o poeta o seu biógrafo, sabe-se contudo que teve apenas estudos primários. Cursou escolas do interior, pois no interior viveu a sua infância.

 

Conheceu diversas profissões até os 53 anos, idade em que fechou os olhos para o mundo, em 1925. Comerciou na roça, abraçou, depois, a carreira ferroviária, tendo sido agente de várias estações da velha Estrada de Ferro Leopoldina, e, lá um dia, ajudado pela sorte, mas desajudado pela rotina, e pelo comodismo funcional inevitável, acabou sendo funcionário postal em Campos, onde estabeleceu o seu Parnaso e teve o seu banco das cismas, como o teve, junto do poético rio Paraíba, o inolvidável Azevedo Cruz, o vate maior da Planície, ao lado de Teixeira de Melo e de Barbosa Guerra.

 

Da lavra de Eloy Ornelas é o sugestivo soneto sobre o mar, que recolho de velha coleção de jornais e revistas do poeta Antônio Silva, que foi tão avaro no resguardo de suas preciosidades literárias:

 

O MAR

 

Quando a Lua no Céu se desembuça,

mostrando a face que no azul prateia,

O Velho Mar o dorso altivo arqueia,

e, enamorado, uma canção soluça.

 

Ouve, ao longe, o cantar de uma sereia,

que o peito vem ferir-lhe ... Um ciúme o aguça.

E cambaleia ... e geme ... e se debruça

por sobre a praia de alvacenta areia.

 

Meu Velho Mar, meu companheiro antigo,

vem repartir o teu pesar comigo !

Vivo, também, na dor que desconforta !

 

Desse eterno lutar ninguém nos priva :

vives cantando uma Esperança viva,

e eu, sepultando uma Ilusão que é morta !

 

Consta que Eloy Ornelas sonhou, como todos os poetas o fazem, editar uma antologia dos seus melhores sonetos e poemas, a que daria simplesmente o nome de "AI!", por ser um livro de notas pessimistas e lamuriantes, baseados no seu intimismo e nas suas confidências incontidas. Talvez quisesse dizer, logo na abertura do livro, a quem o fosse ler, que se leriam os versos de um poeta que, se estampava na face o rictus de uma indiferença búdica, por dentro sofria aquelas amarguras silenciosas que corroem e matam.

 

Um dia, levado pelo desespero, Eloy Ornelas lançou às chamas, que os devoraram, os versos de sua coletânea. Era a decisão imposta pelos sofrimentos físicos que lhe devastavam as entranhas. Não chegou, portanto, a editar o seu "AI!", cometendo, assim, o crime moral de privar a sua descendência e a posteridade de o apreciar em toda a beleza de sua inspiração romântica.

 

Para evitar que se traçassem lendas sobre o seu gesto extremo e se lhe imputassem o estigma de uma farsa, redigiu um bilhete à redação do jornal "Folha do Comércio", em que colaborava, com data de 18 de setembro de 1924, nos seguintes termos:

 

"Rogo a fineza de mandar suspender a publicação dos meus versos e sonetos que aí tenho, pois num momento de aborrecimento, causado por minha moléstia, queimei todas as minhas produções poéticas, desaparecendo, assim, talvez, por felicidade, o meu livro de versos intitulado "AI!".

 

Estava o poeta às vésperas de sua morte. Pouco mais esperava da Vida. Sabia, por intuição, aquela intuição que é um dom que Deus concede aos poetas, que muito breve deixaria de ver o sol, de ouvir os pássaros, de contemplar as ondas do seu mar querido, de conviver nas tertúlias boêmias, de dialogar com as fontes e de perlongar as alamedas de sua velha cidade hospitaleira.

 

O soneto "Duo Impossível" deixa entrever a sua morbidez irreversível :

 

Eis, afinal, da vida o nosso livro aberto :

- eu sem crença, sem fé, desiludido e triste,

atrai-me um sonho mau ... vacilo e o passo incerto

treme à face de um mal que a lança empunha, em riste.

 

Nem sequer o clarão da minha esperança existe

que possa rebrilhar no espaço azul, desperto,

onde perdido, e em vão, meu negro olhar persiste,

um Impossível sonhar num céu torvo e deserto.

 

Tu, velho amigo meu, que outra sina severa

colheu, de tua seiva a flor da primavera

hoje buscas, quem sabe ? - Outro impossível, creio !

 

Façamos de nós dois, dois elos sacrossantos:

-Um Impossível minha alma ansiosa busca em prantos ...

-E outro Impossível, busca, a tua alma noutro seio !

 

Outra faceta por demais curiosa da personalidade de Eloy Ornelas, de que não tem memória, senão através das fontes intemporais da tradição, era o doloroso e vil humorismo que praticava, tanto em palestras de rodas boêmias, como em versos que perpetravam as suas sátiras. Dizem que, quanto a esse "modus vivendi" e a esse "modus faciendi", era esgrimista inveterado da palavra. Deponho para os contemporâneos, assinalou um jornalista desta cidade, fazendo-lhe o elogio por ocasião de seu centenário, que "era Eloy Ornelas perfeito nos versos, pilhéricos e satíricos, trazendo passagens de nossa vida social cobertas de imenso ridículo, fazendo muitos figurões motivo de "blague" e nem ele próprio escapou de sua verve ferina. a propósito de uma charge de Claudinier Martins, estampada em "Genesis", revista literária que se editou nesta cidade".

 

Considero, porém, o fácies romântico de Eloy Ornelas mais expressivo do que o satírico. Contudo, antes que se colha na árvore da sua inspiração lírica, vale a pena aflorar um momento feliz e oportuno do humorismo inquieto de Eloy Ornelas, através do soneto "Desejo":

 

DESEJO

 

Quando eu vejo uma esbelta Melindrosa,

de olhos pisados e carmim no rosto,

no rigor do seu traje de bom rosto,

e mostrando nudez a mais formosa:

 

quando a vejo faceira e donairosa,

no Almofadinha tendo o seu encosto,

como a temer a sombra de um desgosto,

fingindo um mal estar, por mentirosa;

 

treinando, qual palmípede em balsedo,

de tudo e todos a tremer de medo,

presas as pernas numa saia em trava . . .

 

Palavra d'honra ... (ó suco! ó Papa-Fina!)

quisera ver a sós numa campina

correndo em frente de uma vaca brava !

 

Parecia, a princípio, que Eloy Ornelas, conduzia os seus conceitos no sentido da exaltação de uma bela dama de sua época. Parecia. Enganaram-se aqueles que aguardavam esse desfecho. Ironicamente, em verdade, ele queria ver a senhorita melindrosa em pânicos diante ... ora, vejam só, diante de uma vaca brava ...

 

De Eloy Ornelas disse o saudoso Silvio Fontoura, poeta, contista, escritor, jornalista, fundador de "A Noticia" e da Associação de Imprensa Campista, que lhe "faltava cultura, mas era muito grande a sua inteligência e enorme a sua idealização; afastadas algumas incorreções, seus versos têm um "elan" próprio, sem nenhuma aproximação alheia".

 

Celebrizou-se Eloy Ornelas com um soneto que muitos contemporâneos tiveram de memória e costumavam recitar tanto nos bares, como nas esquinas ou nas andanças das horas mortas, quando havia Lua Cheia pelo céu e silêncio nas madrugadas. Em "O Peru", cujo contexto cabe ser transcrito com o destaque necessário nesta hora evocativa :

 

"O PERU"

 

Gosto de ver-te assim, redondo e inchado,

crista vermelha qual mandacaru,

de quando em vez soltando um forte brado

como orgulhoso e estúpido que és tu !

 

Neurastênico, sempre arreliado,

quando tu soltas teu feroz glu-glu,

pareces um fidalgo empoleirado

num tronco de ouro, ó meu burguês peru !

 

Talento tu não tens, bem te conheço;

não sei porque razão te dão tal preço

te apreciam e te acham tanta graça.

 

Pois eu, franqueza, só te invejo a sorte,

quando te vejo, frente à frente à morte,

num formidável porre de cachaça !

 

O nome de Eloy Ornelas é uma luz eterna na lembrança comovida daqueles que o conheceram em vida e que privaram de sua intimidade, estimando-o e admirando-lhe o talento. Pouco importa que tenha sido apenas um autodidata. A verdade é que, calcado em seus próprios esforços, soube subir com galhardia a escada da Glória. Um de seus livros - "Lenda Sertaneja", editado em 1918, segundo se divulgou em 1972, compunha-se de um poemeto vazado em motivação romântica, tendo por cenário de fundo o panteístico ambiente do sertão, onde nasceu e viveu a maior parcela de sua sofrida existência. O poeta Eloy Ornelas viveu em comunhão com a Natureza, tendo convivido com seresteiros inspirados, que improvisavam com rara felicidade. E ele mesmo era repentista e dedilhava o violão com aquela desenvoltura que é a tônica sentimental dos sonhadores.

 

Um dos seus biógrafos de emergência, abrindo as asas douradas do Fantasia, disse de Eloy Ornelas, considerando a origem do seu berço, que "em pleno sertão campista se fez homem e afinou os ouvidos pelas vozes da Natureza, ao som desses murmúrios misteriosos das matas, ouvindo as cachoeiras desgrenhadas, o canto monótono da rola cabocla, o pio estrídulo do nhambu e aquele turturinado garganteio da juriti que faz pensar em abandono e gratidão ... e ouviu também as arapongas, e como um troveiro completo, o seu violão sabia gemer e soluçar".

 

Um precioso depoimento sobre Eloy Ornelas, deixou-o o dr. Phocion Serpa que, tendo vivido muitos anos no Rio de Janeiro, onde se fez romancista, editando, com êxito, "O Calouro", e no Rio de Janeiro. pertenceu à Academia Carioca de Letras. O depoimento do dr. Phocion Serpa contém estas considerações:

 

"Eloy Ornelas foi um bom poeta, nessa expressão vocabular que abarca - desde o homem de ideias, além do homem que canta e sonha - aquele que sabe desabrochar um sorriso no mesmo sítio da face onde os demais contraem um rictus, e transforma em esperança a lenda torturante por onde passam sorrindo, e nos os apontamos como boêmios". Eloy Ornelas, que foi um boêmio sem estroinice, era, como ainda revela Phocion Serpa - dessa família dos "Villers-de-L'Isle - Adam e dos Paul Verlaine ... "un vieux vagabond fatigué d'avoir treinte ans sur tous les chemins ... "

 

Para muitos críticos de receituário poético estereotipado, a pulga jamais poderia ter sido um tema de bom gosto para a poesia. No entanto, Eloy Ornelas, superando a asquerosidade que esse pequeno e saltitante inseto do mundo animal inspira, soube explorar o tema dentro de um sui generis romantismo que faz esquecer, de pronto, o ridículo a que o quiseram levar. "A Pulga" é um soneto assim:

 

A PULGA

 

Quem me vê a sorrir, certo não julga

que o meu viver seja um martírio infindo,

e logo uma sentença em lei promulga :

- "hás - de viver eternamente rindo !"

 

E hel-de rir na dor que vou sentindo ...

(Porque este meu sofrer ninguém divulga).

Nasci bípede humano ... quase lindo !...

Antes eu fosse horripilante pulga,

 

Pulga ... ah! se pulga eu fosse, que ventura !

Num corpete de imácula brancura

eu iria habitar, sem testemunha ...

 

Muito embora, de noite, à soledade,

eu morresse sem dor e sem saudade,

sob a pressão de umas rosadas unhas !

 

De Eloy Ornelas nada mais eu teria a dizer, a menos que me dispusesse a traçar, com paciência, a sua biografia, tarefa do meu agrado se me fosse dado controlar o tempo e recorrer às fontes de consulta, mas a incumbência que recebi fora a de bordar, currente calamo, uma crônica de saudade para trazer à tona da Vida o nome aureolado do glorioso vate boêmio, do perdulário seresteiro, do inveterado repentista.

 

Contudo, não me daria por realizado no desempenho dessa outorga sem antes buscar, na coleção da célebre revista "Planície", que o bissexto poeta José Honório de Almeida editou em Campos na década de 1940 a ... 1950, um depoimento do escritor que se escondia sob o pseudônimo de Carlos D'Arce, sob o titulo de "Eloy Ornelas - O Poeta do Desalento", que ocupa a página nº 53 da edição de novembro de 1944 daquela valiosa revista:

 

"A ausência em Campos de uma revista literária, muito contribuiu para que verdadeiros valores intelectuais pouco produzissem, e, principalmente, para que esse pouco mesmo vivesse, esparsamente, perdido pelas páginas dos diversos jornais diários, diluído entre um artigo de combate e um anúncio de missa.

 

De longe em longe - via de regra nos números de aniversário - lá aparece um suplemento literário exumando um nome já esfumaçado, esbatido pela pocira do tempo, ao lado de um outro nome da atualidade, que não chega a ser guardado em meio à tropelia intensa do futebol.

 

E se volvermos os olhos para o passado, verificaremos, com tristeza, que, além da "Aurora", de Teófilo Guimarães, de "O Ideal", de César Tinoco, e, mais tarde, do outro "O Ideal", de Augusto e Godotredo Tinoco, as inúmeras revistas outras que apareceram, tiveram a meteórica vida de "l'épace d'un matin" ... porque ja nasciam tão precárias que os seus primeiros números já lhes denunciavam o fim próximo.

 

Que saibamos, as únicas revistas literárias que possuíam oficinas próprias foram as acima citadas, e daí, talvez, a sua maior duração.

 

A causa?

 

Não seria, por certo, a ausência de colaboradores, porque ainda hoje vemos reaparecer, na imprensa local, os versos magistrais de Azevedo Cruz, de Anfilóquio de Lima, de Flamínio Caldas, de Teófilo e Tomé Guimaraes, de Inácio de Moura, de Obertal Chaves, de Eduardo de Carvalho, de Antônio Braga, de Arminio Bastos, de Heitor e Alberto Silva, de Severino Lessa e outros - roubados, uns pela morte, outros pela vida, que os tirou do nosso convívio para outras terras, mas onde brilham ainda, na plenitude das suas inteligências.

 

E em meio a todos esses nomes, emergia, galhardamente, em bom plano, a figura curiosa de Eloy Ornelas, o querido e festejado "Yole" ou "Salermo Goytaca".

 

Nascido a 24 de agosto de 1872, em Morro do Coco, distrito de Campos, que serviu de berço a Nilo Peçanha, Eloy morreu nesta cidade a 8 de janeiro de 1925.

 

Sua passagem no meio literário campista foi vivamente assinalado por abundante produção, ainda hoje relembrada com saudade e admiração, embora quase toda sepultada nos perdidos números de publicações cujos nomes já nem lembrados são hoje.

 

Enquanto já aos 53 anos, Eloy sentiu o seu fim próximo, resolveu perpetuar em livro melhores lavores do seu esplêndido estro. Mas, ao sentir a impossibilidade de ver a sua produção em letra de forma - pobre funcionário postal que foi - num dia de desalento, lançou ao fogo o querido original, que só ele conhecia.

 

Mais adiante, torturado pelo remorso, do que fizera, do leito onde já se achava para não mais se levantar, tentou ditar ainda à sua filha o livro destruído; o seu estado, porém, já não permitiu recompor mais que alguns sonetos - os mais íntimos talvez - mas que não seriam, necessariamente, aos melhores.

 

E a revolta de Eloy, ao queimar o seu livro querido, dedicado aos seus filhos - "AI !... "

 

A que suplícios resisti calado,

sem proferir uma blasfêmia apenas,

para poder contar-vos minhas penas,

meus pobres filhos, neste livro amado.

 

Lede-o. É um livro mau; é um condenado

livro, para os que têm almas pequenas.

Mas para vós, que sois louras falenas,

é um livro de ouro em pó cristalizado.

 

Fi-lo à sombra da triste soledade;

em cada verso existe uma saudade,

em cada estrofe uma canção de amor

 

Meu livro é, pois, o desespero ardente

de quem pode soltar unicamente

um - Ai ... - um grito ... interjeição de dor !

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